Calma leitor, esse não é um texto da editoria ‘Pergunte ao Monge’, e também não tem a pretensão de ser. Por isso, pequeno sábio, não é preciso ficar injuriado. É que foi inevitável não pensar no assunto nos últimos dias. Além do mais, nem sei se existe resposta para ele.
Comecei a pensar no assunto depois de ver duas histórias. Cada uma com seu protagonista, mas que estranhamente tocam o mesmo ponto.
A primeira aconteceu perto de casa. Todos os dias ele perambulava cabisbaixo pelas ruas. Seus olhos tristes expressavam a solidão que sentia. Sempre à procura por comida se achegava às pessoas, mas na maioria das vezes, o máximo que ganhava era um “chega pra lá”. Dormia sozinho, se protegia como podia. No lugar do tecido, jornais velhos. No lugar da casa, as calçadas.
Na redondeza, os poucos moradores que se solidarizavam com ele o apelidaram de ‘intruso’, tamanha era sua intromissão na vida alheia. Se avistasse uma porta aberta, não se continha e logo entrava. Se ouvisse uma conversa, levantava os ouvidos e ficava atento.
Estopim curto, se envolveu numa briga um dia desses, e como normalmente acontece, o sexo oposto foi o pivô da história. Não há dúvidas de que a bravura esteja no seu sangue, mas seu corpo, pequeno e franzino, não ajudou muito. Longe de um golpe de sorte, perdeu a disputa e fugiu.
Quando voltou, não era mais o mesmo. Mais triste do que antes, nem as portas abertas ou as conversas pelas ruas o atraiam. Talvez fosse a vergonha de ter perdido a briga ou os ferimentos que custavam a cicatrizar. Não importava mais, agora, a rua atacava também seu corpo e os ferimentos abriam espaço para a morte. Sem forças, ele não queria mais lutar.
Em outro canto da cidade a encontrei. Era quase meio dia quando a avistei pela primeira vez. Seus olhos castanhos, docemente procuravam alguém, só não sei quem. No pescoço, o metal em forma de corrente reluzia sob a luz do sol.
Mais tarde a vi novamente, ela estava sob a sombra de uma árvore, numa tranquila travessinha. O olhar cansado brilhou quando viu alguém se aproximar sem medo. Deve ser difícil ver que todos passam por você, e ter a certeza que ninguém nota sua presença. Olhando mais de perto, notava-se os ferimentos. Alguém a tinha machucado, mas mesmo ferida não perdia sua imponência feminina. Faminta, devorou o prato de comida que ganhara. Mas, além do alimento, ela pedia atenção. Estava perdida.
Quando passei novamente pela travessinha, ela estava dormindo sob a mesma árvore, mas o local se revelou não tão tranquilo como aparentava. Alguém a havia roubado. Seu pesado colar de metal não estava no pescoço. Os vizinhos contaram que um homem o levara. Meu espanto foi saber da inércia de todos. Assistiram à cena de um homem batendo violentamente para roubar, e nada fizeram.
Do outro lado da cidade veio uma boa notícia. Um homem que passava pela rua perto de casa se compadeceu quando viu os ferimentos que tiravam a vida do ‘intruso’. Sem pensar, colocou-o no carro e o levou para ser cuidado pelo irmão médico. Operado, ele passa bem.
Eles são assim. Sempre à espera de alguém que lhes possa cuidar.
Observação – O ‘intruso’ é um convicto vira lata, daqueles que rasgam o lixo para encontrar comida. Voltará para as ruas depois que sair da clínica veterinária que o acolheu. Ela, uma boxer perdida, que teve sua coleira de metal roubada e não se defendeu. Já está em casa, seu dono a encontrou naquela noite.