(publicada originalmente na edição 10 – setembro de 2009 – primeira quinzena)
O título define da melhor maneira o papo com o professor, sociólogo e caipira Fábio Augusto Pacano. Uma conversa franca, solta e reveladora sobre nossa sociedade. Participam deste Colóquio o professor e filósofo Luiz Rufino e o empresário e arquiteto Ramon Moraes.
IncRibeirão – Pacano, qual a principal doença da sociedade hoje, em tempos de gripe suína?
Pacano – Qual sociedade? A brasileira ou a contemporânea?
IncRibeirão – Contemporânea.
Pacano – A imbecilidade.
IncRibeirão – E da brasileira?
Pacano – A malandragem. O mundo se imbecilizou, perdeu referências morais, culturais, extremou o relativismo e tudo vale. Tudo se tornou legitimo, até o escabroso. E a sociedade brasileira padece de uma amoralidade que se manifesta na malandragem. Isto está na alma.
IncRibeirão – Então nós temos uma idiocracia?
Pacano – Nunca tinha formulado, mas é uma idiocracia. Só que quando dizemos idiocracia, estamos falando de uma sociedade idealizada pelo mérito. Os mais idiotas estariam em uma camada superior que os menos idiotas. Não é exatamente isso por que como a sociedade se idiotizou, não se reconhecem os idiotas, as pessoas não se mostram como elas são. Desde a grande explosão demográfica significada pelo processo de urbanização do século 18, 19 prá cá, em cidades a princípio como Paris, Londres, depois no Brasil em São Paulo, a imigração, Ribeirão Preto e por aí vai. O urbanismo (inclusive em alguns colégios as normas de convivência tem pedido que os estudantes se portem com urbanidade), essa urbanidade exige que as pessoas usem máscaras. Até um idiota não é reconhecido como um idiota, ele deve ter máscaras do moderno, do contemporâneo, do descolado, do bacana.
IncRibeirão – Nesse caso o consumo do cidadão contemporâneo seria a máscara que esconde o idiotismo?
Pacano – Sim, porque o mercado e o consumo estão relacionados ao mercado, que na sociedade moderna passou a ser o mecanismo de inclusão e exclusão. Ninguém vê o cidadão reclamando o direito de cidadão. ‘Eu tenho direito a saúde de qualidade porque eu sou o cidadão, sou ser humano e mereço ser tratado com dignidade.’ A pessoa ouve ele dizendo que paga imposto. Então ele está reclamando um direito de consumidor, não de cidadão. O critério é o mercado, quando vai falar de inclusão social é o sujeito que vive com menos de dois dólares por dia. Mas e o sujeito que vive no meio da Amazônia, praticando um sistema agroflorestal? Ele vive com menos de dois dólares por dia e vive em abundância! Não é um excluído.
IncRibeirão – Então onde se forma esse idiota?
Pacano – Na cidade. O homem do campo não é um idiota. Sabe o que é interessante? Ribeirão é uma cidade caipira. Os mineiros preservam bem essa caipirice. O ribeirãopretano sonha em ser um cosmopolita, acredita que ele é um cosmopolita, ele tem vergonha de ser caipira. E o caipira é ladino, vivo, ele não se engana.
Rufino – Pacano, você não acha que o ribeirãopretano é mais folclórico e o mineiro é mais caipira?
O ribeirãopretano é mais folclórico, é o folclórico pejorativo. É um museu de excentricidades. E o caipira não é um praticante de excentricidades. Ele tem um modus vivendi (modo de viver), uma cultura. Porque a cultura dele é ligada à existência de práticas da necessidade cotidiana. E aí está a diferença que se faz de cultura com erudição, e cultura com bom gosto. Culto não é ser erudito, nem ter bom gosto. Ser culto é ter um conhecimento prático que se permite sobreviver. Se você viver na beira da lagoa, ser culto é saber pescar. Saber onde pescar, qual peixe é grande, qual não é. Na cidade, onde tudo é comprável, a monetarização da existência transforma as pessoas em idiotas. Porque tudo pode ser medido quantitativamente, e não qualitativamente.
IncRibeirão – Então a gente pode dizer numa sociedade como essa, que o culto é o político, porque o político sabe viver monetariamente nesta sociedade de idiotas…
Pacano – Não, o político é o malandro, que só comete as malandragens, só lhe é permitido ¬cometê-las porque a malandragem está no ethos (valor, ética, hábitos) da população brasileira. Todos nós somos malandros. Um cientista social da Usp do final dos anos sessenta da antiga Maria Antônia, numa conversa dos anos noventa falou uma frase que me marcou: ‘Nem todo político é um safado, todos nós somos safados e alguns de nós chegam a ser políticos.’ Como nós praticamos pequenas corrupções, pequenas malandragens, nós não nos vemos legítimos para questionar as grandes malandragens. E os grandes malandros só fazem as grandes malandragens porque sabem que nós não vamos questioná-los. O que o PT fez ontem (votou contra o desarquivamento da acusação contra o José Sarney), foi uma malandragem tão grande só para garantir a eleição presidencial futura. O PT se enterrou.
IncRibeirão – Foi uma medida demagógica para o povo?
Pacano – Não, o povo esperava que o PT desarquivasse. O PT sempre foi o portador da bandeira da ética e perdeu porque se submeteu à exigência do Palácio do Planalto. Que negociou varrer a sujeira para debaixo do tapete em troca do apoio do PMDB para a Dilma. E o PMDB o traiu!
IncRibeirão – Nesse caso o noticiário seria uma justificativa para que a grande mídia não caísse em cima dos partidos da oligarquia, os de direita, porque teoricamente esse tipo de atitude seria comum aos outros partidos, como PSDB, Democratas?
Pacano – Como é do PT também.
IncRibeirão – Que ele abandonou recentemente…
Pacano – Desde que o PT ganhou as prefeituras em 1988, isso vem acontecendo paulatinamente, agora de uma forma mais acelerada.
IncRibeirão – Federal!
Pacano – O processo de ‘peemedebização’ do PT. Quando o PT ganhou aquelas prefeituras em 1988, não havia quadros para assumir os cargos das administrações municipais. E o PT começou a receber gente que nunca foi petista, nunca teve compromisso social com nada. E o PT foi recebendo e se peemedebizando. O PMDB nasce assim, num momento em que tem ditadura, o PMDB é o grande guarda-chuva onde cabe todo mundo. Comunista, socialista, cabe socialdemocrata, cabe cristão, cabe todo mundo. Virou isso. E a medida em que ganhou cidades importantes, você acha que o PT tinha quadros suficientes para preencher os cargos do governo federal? Você acha que o Ministro Orlando Silva, com quem militei no movimento estudantil, é um exemplo de capacidade administrativa?
IncRibeirão – O dos Esportes?
Pacano – Sim, foi tesoureiro da UNE (União Nacional dos Estudantes) quando eu fui do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Unesp. É uma piada! O que se gastou para fazer o Panamericano no Rio de Janeiro foi uma piada. Mas nós admitimos por quê? Porque desde o Brasil colônia nós somos acostumados a ficar na borda da mesa esperando cair uma migalhinha do banquete. O Brasil é formado em cima de três princípios: Patrimonialismo – A distinção é formada por aqueles que tem patrimônio e os que não tem. Patriarcalismo – A figura do homem, do provedor, do macho. E o Escravismo. E esses três pilares continuam presentes, mesmo que simbolicamente, na sociedade brasileira.
“… Pelego! Para um movimento ter representatividade social os associados desejam se associar e pagar a mensalidade. Tão pelegos como o sindicalismo que recebe um dia de trabalho de cada brasileiro como imposto sindical obrigatório.”
IncRibeirão – Escravismo é o proletário?
Pacano – Não exatamente o proletário. Ele não existe mais. O conceito marxista de proletariado não existe mais. O que sobrou de bom, de excelente, é o método. As conclusões não são mais válidas. Porque o capitalismo que o Marx analisou não existe mais também, por isso as conclusões são outras. Mas o método, o materialismo histórico e dialético, na minha concepção, talvez pela minha formação e pela escola sociológica que eu fiz, ainda é o grande método.
Rufino – O conceito de mais valia ainda é o conceito mais atual?
Pacano – Atualíssimo, só que sobre novas roupagens. E ele continua a existir. A robotização, a informação e o desenvolvimento dos transportes, todos pautados pela revolução da microinformática, tornaram a valoração da mais valia relativa. Exponenciaram a um ponto que o Marx não poderia imaginar.
IncRibeirão – Todas essas teorias mexem um pouco com a área do bucaneirismo. O que ela seria e se ela teria algum encaixe no Brasil, em nossa sociedade.
Pacano – Pergunta muito feliz porque permite homenagear o professor Evaldo, da Unesp Franca, recentemente falecido, que merece o reconhecimento por ter cunhado este conceito. O capitalismo brasileiro é o capitalismo bucaneiro. Nossa tradição é uma tradição de piratas.
IncRibeirão – Por isso que falei, o cara que fica esperando cair a migalha do banquete…
Pacano – Mas é diferente. O cara que fica esperando cair a migalha é o cachorro. É diferente do gato que pula sobre a mesa pra roubar.
IncRibeirão – Mas digo o fora da mesa, da elite…
Pacano – O empresariado brasileiro é bucaneiro, é covarde. A história da industrialização do Brasil é patrocinada pelo Estado. Via de regra o empresário é covarde. Ele só investe se tiver algum tipo de guarita estatal. E o discurso contemporâneo é tão hipócrita, e a crise mundial mostrou isso, que os capitalistas defendem livre mercado quando tem o lucro. Quando tem as crises, todos correm para pedir pinico pro Estado. E o Estado equivocadamente dá dinheiro para essa gente safada.
IncRibeirão – Chega a ser anticapitalista isso…
Pacano – Um indício de capitalismo tardio, o capitalismo brasileiro, argentino, mexicano. Nós não temos ousadia, nossos empresários não são ousados.
IncRibeirão – Um pequeno sinal disso seria a lei Rouanet? Algum incentivo…
Pacano – Então, tem duas mãos, né? Porque ao mesmo tempo que os empresários posam de bonzinhos, por outro lado sabem para onde vai o imposto que eles pagam. É lícito saber que o imposto dele vai para um empreendimento que ele conhece o que vai ser. Do que ir para um grande caixa do Estado que vai sustentar construção do Tribunal de Justiça, da qual o Nicolau dos Santos Neves levou uma grana. E foi condenado a prisão domiciliar sendo que ele mora numa mansão, recebendo os vencimentos. Aí até eu! Aquele promotor que matou o sujeito no litoral porque mexeram com a namorada e ele pregou tiro no rapaz. Aconteceu nada com ele. O juiz lá do centro-oeste que vendia sentença, o cabeludinho…
IncRibeirão – O da Rocha Mattos…
Pacano – Não aconteceu nada! Como diz o sábio Tião Carreiro: ‘Pobre não ganha demanda, rico não vai pra cadeia.’ Todo mundo sabe disso. E o que fazer? Não tem jeito. Isso somos nós. Se não tiver uma revolução… No Brasil não tem uma revolução.
IncRibeirão – É dentro dessa luta que se formou um pano de fundo que é o seguinte: Você falou do Movimento Estudantil…
Pacano – Vergonhoso! Com financiamento do governo federal? Pelego! Para um movimento ter representatividade social os associados desejam se associar e pagar a mensalidade. Tão pelegos como o sindicalismo que recebe um dia de trabalho de cada brasileiro como imposto sindical obrigatório. Pelego, quem depende de dinheiro dos outros é pelego! Fica atrelado, é ridículo. Congresso Nacional financiado pelo governo federal é ridículo! UNE, vai fazer seu próprio dinheiro.
IncRibeirão – Dentro desse escopo, é dentro do Movimento Estudantil que é perpetuada a maneira brasileira de se fazer política?
Pacano – Não só. O Movimento Estudantil é só um pedacinho disso.
IncRibeirão – Mas é onde se arregimenta…
Pacano – Você arregimenta no Movimento Estudantil, no movimento de bairro, no centro comunitário, no movimento eclesial de base, no sindicato. Mesmo porque são poucos que chegam às universidades, não daria para produzir tanto político no movimento estudantil e ele não falaria para tantos públicos. Cada lugar tem seu público.
Rufino – E os dois últimos presidentes da república, que são polarizados…
Pacano – Fernando Henrique intelectual, Lula operário. Um traço é comum a todos os grupos de onde se arregimentam políticos. Todo aquele que se propõe a fazer política no Brasil sem parecer populista está condenado ao fracasso.
IncRibeirão – Você está dizendo que o populismo é uma necessidade?
Pacano – O populismo pulsa em nossas veias. Há uma canção que diz ‘Repare que a multidão precisa de alguém mais alto a lhe guiar’ (Quem me levará sou eu – Raimundo Fagner). Nós precisamos de um messias. A professora Marisa Alves Pereira de Queiroz tem um livro fantástico, “Populismo – Messianismo no Brasil e no Mundo”. Nós somos um povo messiânico. Somos herdeiros dos portugueses, cristãos e o Cristo é um messias por excelência. Nós precisamos de heróis, de líderes. Nós não votamos com a razão e sim com a emoção. E o messias é um líder carismático, o populista é um líder carismático. Qualquer um que quiser ser político sem ser populista está condenado ao fracasso.
IncRibeirão – Chávez reforçou isso?
Pacano – De um lado sim e de outro não. Ele é um populista que não consegue falar pra toda população. Ele é populista dos extremamente descamisados. Uma catástrofe. Porque quando ele deixar o poder, pela morte! (risos), a Venezuela estará destruída. A proposta do Chávez seria viável no final dos anos sessenta, início dos anos setenta.
IncRibeirão – Revolução Cubana.
Pacano – Sim. Num contexto mundial atual, querendo ou não nós vivemos no capitalismo, o que o Chávez propõe é cavar a própria cova. Qual capitalista sério, mesmo venezuelano, investiria na Venezuela, onde as regras do jogo mudam a cada instante?
IncRibeirão – Posso pegar então os líderes de direita, como Fujimori no Perú, o Meném na Argentina e o próprio Fernando Henrique Cardoso, seriam líderes populistas criados pela mídia? Seria um populista criado pelos grandes meios de comunicação através de propagandas massivas?
Pacano – Não se faz política sem os grandes meios de comunicação. Fernando Henrique é um brilhante articulador político.
IncRibeirão – Mas o que justifica a reeleição dele senão a venda da sua imagem como um grande estadista?
Pacano – Foi vendido, mas tinha que ser populista. E ele não foi populista e não o vejo como populista, ele foi um furo na regra.
IncRibeirão – E o Collor?
Pacano – O Collor era populista. O populista tem uma incrível capacidade de se comunicar com as massas. Elas não são racionais, se movem emocionalmente, com base num pensamento mítico, religioso, mágico, encantado. Lembra da propaganda do Collor? Era o dragão da inflação e ele tinha uma bala e iria matar com uma única bala. Se você varrer a histórias do Brasil das músicas populares, principalmente das cantadas no campo, muitas tratam da temática da onça e do caçador que a mata com um tiro só. E quando a arma falha ele mata com punhal. Esse discurso é extremamente populista. Andar de helicóptero, fazer cooper em volta da Casa da Dinda, pilotar motocicleta em alta velocidade, pilotar jet-ski, ser jovem. Isso é ser populista. O Fernando Henrique é o furo na regra. Recebi um email hoje de uma associação dos estudantes de ciências sociais, acho que do sul do Brasil. Contra uma homenagem que vai ser feita ao Fernando Henrique como sociólogo, porque ele vetou a lei que reintroduzia no ensino médio o estudo de sociologia e filosofia. E convocando os sociólogos e os estudantes de ciências sociais a protestarem. Que cretinice, ele é um grande intelectual, um grande sociólogo, contribuiu muito. Vira corporativista, todo aquele que votou contra minha possibilidade de emprego, é um traidor.
Pacano – E foi aprovada agora no governo Lula…
IncRibeirão – Então dá para o Lula que não é sociólogo. Se o Fernando Henrique não pode porque não aprovou, então dá pro Lula que não é sociólogo, mas aprovou?
Rufino – Muita gente atribui ao Fernando Henrique o fato de ter dito ‘esqueçam o que eu escrevi’. Ele fez idêntico ao que escreveu. Queria que você comentasse das relações que ele se baseia nas idéias do Trotski…
Pacano – O desenvolvimento e a dependência da América Latina. Onde ele aponta que um capitalismo dependente não rompe. O que leva ao rompimento posterior é utilizar uma técnica de crescimento dentro da dependência.
Rufino – O Marx chegou a dizer que as colônias que rompessem com a metrópole e declarassem a independência estariam fadadas ao desaparecimento.
Pacano – Fernando Henrique é um grande marxista. No livro “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional”, na introdução tem a descrição do método dialético que é a melhor que eu já tive acesso. São onze páginas dificílimas de serem lidas, mas é a melhor definição que eu já li. A frase, embora tenha sido ‘esqueçam o que eu escrevi’, deveria ser ‘esqueçam a interpretação que vocês deram para o que eu escrevi’. Por ele ter sido, e acho que é ainda, um grande pensador marxiano, os marxistas queriam que ele se comportasse como alguém de esquerda. E ele não fez isso. Acho que os avanços do governo Lula, e foram muitos, e eu preferia falar do governo Lula e não do Fernando Henrique, muitos são devidos aos avanços do governo Fernando Henrique. Não só da estabilidade da moeda. A hidrelétrica de Xingó, a ponte ferroviária sobre o rio Paraná. Eu me lembro de sete balsas cruzando o rio que tem 2km de largura carregadas com contêineres de soja. Isso era uma imbecilidade. A nossa soja é mais barata que a norte americana quando sai do campo e no porto ela já é mais cara. O gasoduto Brasil-Bolívia é uma obra fantástica, fundamental. Os programas sociais que depois foram incorporados e ampliados, mérito do governo Lula de ter sido ampliado, fantásticos. Mérito do governo Lula de ter assumido políticas de estado, e não de governo. É a primeira vez que vejo isso. Não sou tão velho assim, estou beirando os quarenta. Eu me lembro ainda do Figueiredo dizendo que tem nojo do cheiro do povo, que prefere o cheiro do cavalo. Mas o governo Lula foi o primeiro governo que eu vi que não era política de governo. Mudou o governo, muda tudo. É política de Estado. Continua o que o outro tinha feito, amplia e inova.
IncRibeirão – Até porque a gente não pode esconder o pano de fundo dos dois governos que é o financiamento através de desvios de dinheiro para manter este projeto. Independente das obras e dos avanços que foram colocados por estes dois governos, voltando ao início da entrevista, são os mesmos idiotas com roupagens diferentes. Com o mesmo títere Daniel Dantas. Ele levou as teles no primeiro e as uniu para ter a maior no segundo.
Pacano – Mas isso não são só eles. “Tutti quanti!”, “Tutti quanti putali, fratello mio”. Todos quantos putos, meu irmão. Todos.
IncRibeirão – Aqui não estamos fazendo defesa de nenhum deles.
Pacano – Por isso que é hipócrita acreditar na representatividade. Ramon, você acredita que o parlamentar no qual você votou, ou que cada um de nós votamos, representa os nossos interesses ou interesses próprios?
Ramon Moraes – Com certeza, próprios.
Pacano – Ele não vem perguntar pra mim o que eu penso. O parlamentar não faz conferência de mandato dizendo ‘olha gente…’ Você votou para vereador, e você recebe a pauta de votações da câmara de vereadores? Ele te chama para mostrar a pauta e para você se posicionar?
IncRibeirão – Muito pelo contrário, nem recebe!
Pacano – Ele não chama porque não interessa muito pra ele. E pior, ele sabe que não interessa. Nós não gostamos de fazer política, porque somos messiânicos e nós queremos alguém que faça por nós.
Rufino – Isso é a falência no trato público, ou o trato público nunca existiu entre nós?
Pacano – No Brasil o público nunca existiu. O público, puro? Nunca existiu. A história do Brasil é uma história de promiscuidade entre o público e o privado.
IncRibeirão – Existiu algum lugar onde existiu o público puro?
Pacano – Na Grécia, na França, Alemanha.
IncRibeirão – Em que época?
Rufino – O conceito iluminista é um conceito francês. O esclarecimento com Kant, Hegel.
Pacano – Na Rússia, no início da revolução. Na França, no século 19. A França criou a noção de público, não que tenha conseguido praticá-lo em sua plenitude. Pela percepção, não sei se correta ou não, que essa promiscuidade entre público e privado existe em todo lugar. Mas o que me chama a atenção é que aqui ela é descarada.
IncRibeirão – Culpa dos portugueses e da nossa colonização por pessoas de índole duvidosa? Até porque esta cultura vem também com a família real portuguesa…
Pacano – É assim, o Roberto da Mata dá uma explicação que acho fantástica. O Brasil é uma sociedade altamente hierarquizada. Por renda, por gênero, por cor de pele, por acesso à educação. O pobre está f., se for pobre e preto tá mais f. ainda. Se ele for pobre, preto e aleijado, ele é f. ao cubo. Se ele for pobre, preto, aleijado e homossexual, ele está mais f. ainda. As discriminações se sobrepõem. Não é só de classe. Se ele for preto e rico, como é nosso nobre Rei Pelé, o tratamento é diferente. Esta sociedade altamente hierarquizada tem pouca mobilidade. É muito difícil o rico virar pobre, o pobre virar rico. Não tem ascensão social, é difícil. Aquele estudante de escola pública que consegue chegar à universidade, ele furou o cerco da burguesia. Ele é um vitorioso. Mas essa sociedade não trata as pessoas como iguais. Não tem o cidadão. Então como é que você faz para transitar? Você estabelece relações de cordialidade, através do compadrio. Você é poderoso e eu te faço meu compadre. Você batiza meu filho e agora eu sou da sua família. Então consigo pequenos favorecimentos pessoais por conta da relação que eu tenho com você. Como o público nunca foi formado no Brasil, ele foi sendo invadido por aquilo que é privado.
Rufino – Gostaria que você falasse do conceito da hiperdemocracia.
Pacano – Penso que é a prática da política da pós-modernidade. Tudo vale, até coisas que deixariam o Tim Maia ruborizado. Ela faz com que o sujeito se dê ao direito de passar com o seu carro na rua, com o som super potente, obrigando todo mundo a escutar a b. de música que ele escuta, e se você reclamar, você é o chato. E se falar que o que ele está ouvindo é uma b., e é uma b. (eu sou um pseudo músico, se você colocar um funk carioca ou um psy ou um bonde do Tigrão num pentagrama você verá que ele é simples matematicamente. Se colocar um chorinho do Pixinguinha é uma coisa ao nível de um Bach. ) você é um intolerante. Porque é o gosto dele, como se gosto fosse individual. Gosto é socialmente determinado quando se participa de um grupo, não seu gosto. Sobre o ponto de vista poético, a rima da palavra “azul” com “você sabe o que”, é muito pobre. Então você não pode colocar a rima pobre ao lado da rica, a composição complexa ao lado da simples, a não ser que você saiba que uma é complexa e a outra, simples. Não que o simples seja ruim. O simples caipira como o que o Rolando Boldrin faz é genial. Eu costumo dizer para os meus alunos o seguinte: ‘Filet mignon é filet mignon, lavagem é lavagem.’ O porco gosta de lavagem e come filet mignon sem distinguir da lavagem. Eu sou gente. Contra-argumentando isso, um aluno “DJ” que tem a pretensão de ser músico (DJ é uma das coisas mais bestas que eu já vi na minha vida): ‘Oh professor, quando as notas graves e as extremamente agudas da música eletrônica soam ao seu ouvido, as suas células tremem e desabrocham como uma flor’. A minha resposta é que eu me recuso a ser um amontoado de células! Eu não sou um primitivo. A mesma coisa quando falam ‘Olha, você é intolerante’. O funk é a música do pobre, negro e favelado carioca. Eu me lembro que Cartola foi pobre, negro e favelado carioca, analfabeto e produziu pérolas. E outra. Eu não sou negro, eu não sou mano, favelado, carioca e não moro no morro. Por isso esse som não me diz respeito. E eu não vou viver a fantasia pós-moderna, para retornar às máscaras da civilização, às máscaras que usamos para viver num mundo urbano. Eu não vou viver a existência fantasiosa de que eu sou mano. Acho feio. As pessoas falam que eu sou intolerante. Se tiver tocando isso em algum lugar eu vou embora, ou melhor, eu não vou. E se você vier na minha casa e colocar isso, eu vou te escorraçar. As pessoas não são obrigadas a concordar. Isso é outra imbecilização da hiperdemocracia. As pessoas acreditam que só pode haver amizade e convivência onde há algo uníssono, unanimidade burra. Onde há discordância há amor, fraternidade, amizade e há crescimento. A concordância automática, para ser simpático. Trocou-se o medo de ser ridículo pelo medo de parecer grosseiro. Prefiro ser grosseiro a ser ridículo, a não ser aceito. Porque precisamos tanto da aceitação? Aos meus alunos de 2º grau eu digo que eles parecem fósforos, só andam em turminha. Por que tem que andar em turma?
IncRibeirão – Einstein, uma noitada em que todos estão de acordo é uma noitada perdida…
Pacano – Perdida.
Rufino – O homem moderno prefere um modo de vida sem discussão a um sistema de discussão.
IncRibeirão – Não seria uma preguiça mental isso, a preguiça de discutir?
Pacano – Porque ele tem uma prateleira cheia de idéias, comportamentos e estilos para serem comprados. Já que é uma entrevista diferente, para um jornal diferente, para jornalistas diferentes, o nobre contraponto professor Rufino…
IncRibeirão – Nobre é o pai dele…
Pacano – É meu amigo há 13 anos. 13 anos de discordância, de discussão, de briga. E de amizade e amor fraterno crescente.
Rufino – Aparentemente nós não parecemos em nada. Aliás, a gente briga muito tempo. E eu insisto em preservar um sistema de discussão. E não um sistema acabado em que ele usa a mesma roupa que eu, escuta a mesma música. Quando eu olho para o Pacano, eu olho para um espelho tosco e distorcido do que eu sou.
Pacano – E há saída? Não! Eu sou trágico.
IncRibeirão – Trágico é o fatalista com emoção.
Pacano – A curto prazo, e quando digo curto estou falando de 50, 60 anos, para a política? Não vejo saída. A não ser que as pessoas se auto-representem. Do catolicismo no Brasil, eu não vejo saída. Sob o ponto de vista teológico, o Ratzinger seja talvez o maior gênio que eu já vi. Pelo ponto de vista sócio-antropológico, ele é uma anta. Para educação, eu não sou professor universitário. Com muito orgulho eu sou professor de crianças, e não vejo saída. Tudo ficou pra gente que é professor. Os pais não suportam os filhos e mandam para gente educar na escola e eu não tenho autoridade paterna. Sabe os alunos que mais me amam? Aqueles que eu bato de frente. ‘Não é não, está vendo o tamanho da minha mão’? Ah, mas isso é autoritário, a criança vai ter medo. Mas medo é saudável! Ele impede que você pule do prédio achando que vai voar. Você não coloca a mão em ninho de cobra porque você tem medo, ele é bom. Preserva a vida.
IncRibeirão – A progressão continuada então foi a maior imbecilidade criada por um governo?
Pacano – A segunda maior contra a educação. A primeira é acreditar que todos são capazes.
IncRibeirão – Como diferi-los?
Pacano – Pela vontade. Tem que ter vaga em escola de qualidade pra todo mundo. Mas as pessoas não podem ser obrigadas a estudar. Eu nunca vou ser um craque do futebol. Não tenho talento pra isso. Mas eu tenho talento para estudar. Como outro vai ter pra ser pagodeiro e vai se dar muito bem na vida e ser feliz. Como outro vai ser marceneiro sem nunca ter entrado na escola e vai ganhar mais dinheiro que eu que sou professor. Por que todo mundo tem que estudar? A escola é um lugar de gente infeliz. Eu sei, eu dou aula faz treze anos para criança. Da oitava série à pós-graduação. Crianças infelizes, tristes.
IncRibeirão – A questão não é ficar dentro de paredes, 6 horas por dia?
Pacano – Abstratamente, sim. Ciências humanas, quando ministradas por professores talentosos, tem uma diferença, nós conseguimos seduzir e encantar. O aluno que tem uma grade curricular cretina. Seis, sete aulas de matemática, quatro, cinco de físicas, de química. Quando tem um professor de geográfica, história, é o refresco.
IncRibeirão – É nesse momento que a educação tolhe a capacidade cognitiva de uma pessoa?
Pacano – Sim, porque é uma educação baseada numa razão instrumental. É uma educação que tem que servir para algo. E os coordenadores pedagógicos nos falam que você tem que deixar claro para que serve aquilo que a criança está aprendendo. Não serve para nada! Como é que vai servir para alguma coisa? Pra que ser inteligente? Pra que gostar de boa música? Pra que conhecer bons vinhos, reunir os amigos, tomar um café e conversar coisas inteligentes? Não serve pra nada! Mas para o capitalismo tudo tem que servir para alguma coisa. O que não está sendo útil é condenado. Por isso ninguém contempla, é condenável, coisa de vagabundo. E os contempladores que são os grandes gênios.
IncRibeirão – Ócio criativo do Domenico di Mazzi?
Pacano – Não gosto muito do Domenico porque ele é meio falsário.
Rufino – Eu não acho que seja o ócio, mas o descanso depois do trabalho é muito mais frutificante do que o ócio. Você tem toda uma realidade de vida adquirida pra refletir sobre ela.
IncRibeirão – Seria a única bandeira legítima dos sindicatos, a redução da jornada de trabalho?
Pacano – Não com o mesmo escopo, porque o que eles querem é audiência. É legítimo, mas não com a justificativa de gerar mais emprego. E por incrível que pareçam as contradições, o Marx é o método pois ele aborda as contradições, nós caminhamos na sociedade da automação que vai criar mais tempo livre.
IncRibeirão – Esse tempo livre seria para consumir mais a cultura de massa?
Pacano – Ou para criar cultura, lazer.
IncRibeirão – O tempo livre pode ser um tiro no pé, para emburrecer o cara?
Pacano – Pode, mas nossas análises, quando chegam a essas conclusões se vai ser bom ou ser ruim, partem de um equívoco. De que o homem é simplesmente fruto do meio. Você ignora o ato de vontade do homem. Ele é produto do meio e o desenvolve ao mesmo tempo. Você não pode estipular uma coisa pra um se ele não tiver vontade. Eu não consigo fazer um aluno que não tem vontade entender. Estarei malhando ferro frio, não pega forma. Tem outro que assiste à mesma aula e rende que é uma beleza. Porque ele desenvolve o hábito da vontade no sentido de compreender. Então tem o ato de vontade, porque senão todos que nascem em um ambiente socialmente degradado vão ter uma vida degradada de bandidagem. Tem um monte de gente que fura. Tem gente que nasce em berço de ouro e vira bandido. Tem o ato de vontade individual.
Rufino – Tem os homens que fazem a história mas não sabem que as fazem.
Pacano – Perfeito.
IncRibeirão – O que significa antropologia filosófica marxisista?
Rufino – Liberdade do indivíduo diante da massa. Consciência individual diante das circunstâncias, sem perder as referências dessas circunstâncias. Porque esse homem, como diria Ortega y Gasset, ‘Sou eu e as minhas circunstâncias’.
Pacano – Mas as circunstâncias oferecem possibilidades e limitações. Possibilidades podem ser efetivadas e limitações podem ser superadas. Ou não.
IncRibeirão – Sociologicamente e você, como você se define?
Pacano – Ainda resta um fio de esperança que do mesmo jeito que nós somos um povo lazarento, nós somos um povo bonito. Nós temos um modo de se relacionar com o meio ambiente pela nossa origem indígena e africana que nenhum outro povo do mundo tem. Você acha que no resto do mundo se tratam os bichos como nós tratamos aqui? O índio dá a teta pro macaquinho mamar. Matou a mãe do macaco pra comer, não sabia que tinha filhote, e dá a teta para mamar. Temos uma relação com o meio ambiente diferente do resto do mundo. O nosso jeito de preservar não é simplesmente o método capitalista, onde ele se torna um ativo. Preserva porque pode dar lucro, senão não preserva. É um componente do custo. Nós temos uma relação afetiva. Por nós, brasileiros, sermos esse saco de gatos étnicos que nós somos, temos uma tolerância que os outros não tem. Então se o resto do mundo tem para ensinar a coisa do público, nós, como disse o falecido e maior de todos os intelectuais que o Brasil já teve, Darci Ribeiro, que teorizou, militou, botou a mão na massa, nós podemos oferecer ao mundo uma nova Renascença. Há uma esperança, mas a saída que vemos para nós não é racional.
Rufino – Paira sobre nós um espírito do tempo como dizem os alemães, o Zeitgeist, do Divino Espírito Santo da festa do Divino.
Pacano – Mas não é o espírito do tempo. O Gil fala que é o Baião Atemporal. Nós somos atemporais. Por isso que nós nunca estamos no compasso do resto do mundo.
IncRibeirão – É um eterno carnaval?
Pacano – Não, é uma eterna expectativa do Carnaval e uma eterna angústia diante da chegada da Quarta-feira de Cinzas.
Pacano –